Entrou no comboio.
Tinha um casaco verde-escuro, camisa branco sujo, gravata de cor discreta.
As calças estavam vincadas, como a testa.
Sentou-se, olhou pela janela. Lá fora um quase ninguém sem aceno.
Última chamada.
Olhou de novo. E partiu.
Verde. A paisagem era verde. Como aquela do Douro.
Mas, sem rio.
Á sua frente, um senhor calvo, mãos escuras.
Olhos de revolta.
Disse-lhe que precisava de saber quem era.
Ele que estava de olhos numa qualquer página de um conhecido clássico, não ligou.
O ‘mãos escuras’ insistiu.
“Precisa de saber quem sou.”
Tirou os olhos do livro.
Reticente.
O outro continuou:
“É como uma necessidade de atear fogo em mim mesmo.”
Ouviu-se um estrondo.
Uma qualquer pedra na linha.
“Existem pedras na nossa linha, ás vezes o problema não são as pedras mas, sim as linhas mal definidas.
As estruturas mal construídas.
As arestas mal limadas.
As mudanças não acompanham.”
E o clássico já não importava.
Ali estava ele, naquele comboio sem bilhete.
Naquela linha sem destino.
A ouvir um qualquer desconhecido a dizer que precisava de atear fogo em sim mesmo.
E não se calava.
“O que tem na mala, perguntou.”
Recordações, respondeu.
“No próximo apeadeiro deite a mala fora. Não espere pela estação, ela pode não chegar.”
Ele que até então estava de gravata… tirou-a!
Estava a sufocá-lo.
A estrangulá-lo.
A abate-lo.
E todas aquelas recordações, naquela mala cheia de autocolantes, sítios, pessoas, passagens, ora metade cheio, ora metade vazio.
O outro continuava.
“Um dia tive uma mala dessas, tinha um cinto castanho, eu apertava o cinto conforme as sensações, um dia apertei tanto tanto mas, tanto… que me esqueci de sentir, guardava tudo e no fim não vivia nada, hoje não tenho mala, tenho só este bolso… gosto deste bolso, é pequeno como eu… guardo o necessário para respirar..”
E o resto, perguntou.
“O resto dou ao vento.. “.
E saiu na próxima estação.
Ele era assim, de estações… as malas grandes só servem para apeadeiros.
Ainda hoje quando sinto o vento.
Lembro disso.
Não guardo, mas tenho um bolso que anda meio vazio.
Como as horas.
10 comentários:
ai nha filha! quia dando-me acim um atáque do coração ca nha maria mais eu távames munte desesperádes por na dáres notíças... tás memo bém? agente camanda muntes bêjinhes acim de munta ternura.
:) beijo vagabundo louca ...
Para o dia 29 bilhetes a � 25 mas a receita � para a caridade!
Beijinhos das Caldas
Que sadio reler-te... ainda que nessa incómoda posição!
O ar é fresco e não necessitava do rio Douro... Bastava a Serra e o Gelo!
Beijo daqui... quase ao lado.
Que a aragem dessa Serra maravilhosa que aí tens pertinho, traga uma lufada de bons motivos para óptimos textos. ;)
bjo
Rectifico: preço dos bilhetes a €2,50.-
2 beijinhos
Primeiro: A banda sonora é perfeita. Muse no seu melhor.
Segundo: A escrita é muito bem ritmada e a imaginação não falta
Um beijo*
"CARPAMUS DULCIA"
com ternura...
É bom teres retomado a escrita, fiquei contente.
O texto é muito bom,a mensagem muito oportuna,a vida só tem sentido na medida em que a partilhamos,as recordações fazem parte dela,mas só valem se contribuirem para enriquecer a nossa relação com nós mesmo e com outros.
Continua.
Um abraço
Lá fora, um quase ninguém sem aceno.
[Nele,] um bolso meio vazio, como as horas.
Estranha, estranha... Há coisas que tu escreves, que eu gosto muito de ler!!! :-)
Fora!, o que há nas malas e nos bolsos, que enche o espaço de vazio ocupa o lugar dos sonhos!!!
PS - Vê lá se acentuas os "à(s)" como deve de ser. Onde é que já se viu, uma escritora consagrada'...!
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