quinta-feira, junho 23, 2011

Há pessoas parvas. E depois há o meu senhorio.

As escadas eram de madeira, cheiravam a mofo e a vizinha de baixo era prostituta. Nada de anormal, não fosse a jovem do quarto ao lado do meu ser viciada naquelas batatas fritas, cujo nome não me recordo. Aqueles de pacote cilíndrico. E guardava todos os pacotes em cima do guarda fato, e o guarda fato tinha as mais recentes criações da Fátima Lopes. Nada de anormal, não fosse a sua preferência para vestir bem, do que para comer bem, que isto dos euros não chega para tudo, não senhora.

Numa outra casa, também no bairro da Ajuda, o anterior inquilino e dono da casa, tinha ganho o Euromilhões. Fez uma casa na quinta da Marinha e alugou aquele apartamento à frente do Pingo Doce só porque precisava de pagar o motorista. Muito bem, dantes nem carro tinha, agora o senhor precisa de motorista. São os euros meus amigos, são os euros.
Nessa casa, no quarto em frente ao meu, dormia uma moça que não sabia cozinhar, mas coincidência das coincidências também era viciada em batatas fritas, mas mesmo batatas. E a moça quando lá se lembrava do vício, tal era o maneio da coisa que toda a cozinha ficava suada de óleo, em todos os cantos, no tecto, nas paredes era óleo que dava para encher o depósito da limusina do nosso senhorio.

Houve outra vez, numa outra casa que era um sótão dividido em dois, a senhora do sótão ao lado coleccionava bonecos de porcelana. Tinha uma figura parecida com aquela bruxa da branca de neve, sinceramente a mulher fazia-me confusão. O tal sótão já era pequeno, mas dividido em dois era mais que pequeno, era minúsculo. Quando ia lá alguém jantar, era em pé. Era mais chique. Buffet, portanto. Tudo normal, não fosse um dia a tal senhora ter enchido por completo a parte dela com bonecos, e um belo dia chego ao meu estamine e tenho a cozinha cheia daquelas miniaturas de porcelana. Era dentro das panelas, em cima da frigideira, até dentro do aquário. O xico, o peixe mais velho, bateu com os cornos num dos bonecos e andava a boiar no grande oceano.

Também em Lisboa, ali para os lados do palácio do Senhor Presidente, a casa era fantástica, um último andar com vista para a Igreja da Memória, tinha casa de banho privativa, quando chovia muito a malta tinha que mudar o rumo da cama, para não gramar com um chuveiro matinal antes do previsto.

Ou na ilha, em que o senhorio pensava que a juventude de trinta anos não precisa de um duche quentinho no Inverno húmido Açoreano. Esquentadores para quê? Os euros são caros, e a malta pode muito bem pegar em panelas e aquecer as suas doses de duche diário.

Tudo normal. Tudo muito normal. No outro dia contei oito, mas depois lembrei-me de mais duas. São ao todo dez. Dez casas por onde já passei. E outros tantos senhorios.

Contemporaneamente a grande moda de sacar uns dinheiros à geração dita à rasca é o aluguer de quartos. E não falo de aluguer de quartos de estudantes. Falo da maltinha de trinta, ou como eu gosto de chamar - Da maltinha verde. Verde de recibos, portanto. A modos que os senhorios viram em nós, malta que tem trinta anos, sem família, e com trabalhos de curta duração um bom negócio de chulice.
Não passam recibos, são bestas quadradas, e falam para nós por cima dos óculos. Naqueles preparos de ‘vê lá se amochas que aqui a precária és tu’.

Em frente aos meus aposentos dorme um Espanhol, e no outro quarto uma moça que só ouvi falar uma vez. Adiante.
O Espanhol vende tectos falsos. Numa destas madrugadas era um ver que te avias de barulho, pensava eu que o bacano estava a experimentar os ditos tectos falsos na sala. Sim, eu sei que é uma coisa parva de se pensar, mas foi o que eu pensei. O gajo tem a mania das dietas, e com a falta de açúcar, o cérebro podia ter-lhe dado para aí.

De manhã não havia sala. Haver até havia. Mas ao contrário. O senhorio que é uma pessoa tão simpática e bem formada, achou que a sala era demasiadamente grande para nós os três. Vai daí entrou à ‘má fila’ em casa e… dividiu a sala em dois. Sendo que numa das partes, não cabe mais que uma cama. E não é que a cama também já lá estava? Porreiro pah, uma pessoa acorda de manhã e tem mais um quarto em casa. Divido da sala com um armário. E isto tudo numa madrugada.

E ainda dizem que neste país tudo funciona a reboque. ‘tá bem tá.

Há pessoas parvas. E depois… bem depois… existem os senhorios.

P.S.: Maltinha dos trinta barra verde se me estão a ler, fé na vida companheiros.


2 comentários:

Unknown disse...

"...Há um silêncio absoluto aqui até mesmo dentro de mim... Estou só, acompanhado apenas da minha solidão... por isso, não estou sozinho... estou acompanhado, logo não estou só... Estranho... O silêncio penetra dentro de mim sem pedir licença... também não sou capaz de lhe impedir a entrada... ele é tão livre quanto eu e eu, possuidor dessa liberdade, deixo-o entrar e sinto que a excitação que ele me provoca é sinal de prazer... Um prazer proveniente da paz que ele, o silêncio, alberga... Com ele, vem apenas o som da deslocação do ar quando ele chega sem avisar... É que, de repente, só (estando só) o sinto quando ouço o silêncio da sua chegada... Senta-se aqui ao meu lado e vejo perfeitamente que ele me olha de soslaio... mas não lhe ligo importância... quem se julga ele?... Alguém de muito especial?... Devo-lhe alguma deferência?... Não... Não lhe franqueio sempre a entrada?... Então, que mais ele quer?... Que lhe dirija a palavra?... Não!... Mil vezes não!... Se o deixo penetrar-me é porque assim o desejo e o quero, em silêncio, em paz, ouvindo-o sem o ouvir... sabendo apenas que ele está aqui... A solidão, por seu lado, essa não se importa muito pela presença dele... já está habituada... Olha-o com desdém como se ele, o calado silêncio, fosse ninguém... Sabe muito bem que ele não me faz mossa... sabe perfeitamente que ela, a solidão, é que é a minha amante preferida, hoje cinzenta (pode ser) mas amanhã, quem sabe, se colorida... É apenas a paz que me traz sereno e me faz sentir o seu frio ameno... é que o silêncio tem temperatura, ora é doce e quente, ora azedo e frio... mas já reparei imensas vezes que quando é azedo se sente um frio ameno... não enregela nem me estremece o corpo... amorna-me a alma e deixo-me ficar na mordomia da sua presença... É tudo apenas um estado de solidão a sós com o silêncio que me faz companhia... Por isso, não esfria... Deixa-me estar como quero... E ele se queda também e fica... Não incomoda... Sabe que a qualquer momento que eu queira, o mando embora... sabe que um grito forte pode, num ápice, cortar o ar que ele deslocou ao chegar... Ele sabe isso e por isso não se preocupa comigo... Mantém apenas um vago olhar... Como quem não sabe se parta ou se deve ficar... Depende apenas e só do meu grito... se este, o grito, do meu peito sair com força, com ânimo, com desejo de ser quem sou e não quem quero parecer ser... O problema com que me debato é saber o que sou ou mesmo até quem sou... Serei eu próprio o silêncio?..."

mfc disse...

Do sonho à realidade ou da realidade ao sonho?!
De qualquer modo nada que não se tivesse podido passar... ou que não se possa vir a passar!!