segunda-feira, junho 29, 2009

B.

[ B. , 28 de Junho de 2009 , FF]

Gosto de andar de comboio.
Gosto das estações antigas, dos seus cheiros, dos azulejos, do relógio provecto que muitas das vezes está inactivo.
Como uma antítese entre o movimento e a espera.
Estações são movimentos, linhas que se cruzam.
Estações são nostalgias. São saudades. Ah saudades.
Seres humanos de todos as maneiras e feitios.
Estações também são silêncios, partilhas, encontros, solidão.
É.
Gosto mesmo das estações.
E também dos apeadeiros.
Daqueles que nem terra, têm.
Daqueles que um casal de velhotes toma conta da cancela, e ás vezes o movimento é tão pouco que usam a cancela para estender a roupa dos seus pensamentos passados. Dos seus sonhos. Dos movimentos perpétuos de tantos e tantos passageiros que por ali passaram. E tantos eles sem parar.
Tantos deles, nem sequer repararam na cancela partida pela força do estendal.
Já conheci algumas pessoas verdadeiramente bonitas nos comboios.
Pessoas que valem a pena. Pessoas que falam com a pessoa ao lado, que desabafam, que choram, que abraçam, sem medo, porque sabem que a pessoa sai numa qualquer próxima estação. Porque sabem que não vai haver cobranças, ressentimentos.
Ontem a caminho da Régua, no banco ao lado do meu, estava uma senhora, tinha os cabelos branquinhos, vestida de azul, massajava os pés.
Olho azul, pele branquinha, pensava que era Inglesa. Afinal era Belga.
Meus senhores, se há viagens que valem a pena por uma brisa de vento, esta valeu com toda a certeza a pena pela lição de vida desta Senhora.
Chamemos-lhe B.
B. tem 80 anos, uma força de vida extraordinária.
B. viaja à cerca de um mês por Portugal, e completamente sozinha. 80 anos meus amigos, 80 anos.
Prosseguindo.
Passou por Lisboa, Sintra, Ericeira, Mafra, Óbidos, Guimarães, Tomar, Porto, Braga .. e por aí a fora.
B. conhece toda a Europa, disse-me que só faltava conhecer Portugal. E veio. E gostou.
Quando questionada pela gastronomia nacional, B. lambia os beiços ao falar de um Bacalhau no Forno lá para os lados de Braga.
B. falava com a alma toda, com os olhos todos, com as mãos todas.
As rugas tomavam uma qualquer vida para além da dela, que não a dela.
B. trabalhava numa orquestra, na orquestra de Bruxelas.
Foi a carga dos trabalhos para eu entender no meu inglês de 1 tostão, que B. não foi música, mas sim, organizava os concertos, os espectáculos, os sons pelos palcos Belgas.
B. adorou o nosso vinho, os nossos sabores, a nosso gentileza lusitana.
B. não gostou assim tanto da organização turística do Porto, segundo ela a cidade não trata bem o turista, não está organizada para o turismo, e sentiu-se muito mal por ser desprezada. Ela nem sequer colocou a hipótese de ser idosa, ou de pensar que essa ausência de afogo fosse pelos seus cabelos brancos.
Para B. meia dúzia de pessoas não fazem um povo.
B. leva os Portugueses no coração. Segundo ela são gentis e de sorriso fácil.
No fim do dia, B. veio junto de mim, pegou nas minhas mãos e disse-me: “ Tudo o que fizeres na vida, faz de coração, senão não vale a pena o fazeres.”
Pegou na mochila, e foi-se embora.
Não sei o nome de B.
E B. não sabe o meu nome.
Mas, sabemos a retina de uma da outra. E é isso que fica.
Estações são movimentos, linhas que se cruzam.
Estações são nostalgias. São saudades. Ah saudades.
Seres humanos de todos as maneiras e feitios.
Estações também são silêncios, partilhas, encontros, solidão.
É.
Gosto mesmo das estações.

segunda-feira, junho 22, 2009

Canela

Fui uma vez ao psicólogo.
Era uma senhora. Tinha os seus trinta e cinco anos, ou até menos.
Eu tinha vinte. Lembro-me bem desse dia, faz estes dias nove anos.
Nunca gostei muito de psicólogos, sempre achei que eles tinham um discurso previamente adestrado, preparado, ensaiado.
Como se uma pessoa entrasse no consultório, eles olhavam e pensavam “ É pah este tipo faz-me lembrar a tese daquele meu colega da página seis.”
Sei lá, sempre me fez arrepios, pensar que para eles nós éramos mais uma página, uns coitados sei eira nem beira ‘almal’.
Aquelas retóricas baratas, aquele jogo dissimulado.. eu sei que é a função deles, e hoje tenho outra perspectiva sobre tal ciência.
Faz por estes dias nove anos, entrei numa pastelaria lá para os lados dos Restauradores, estava a chover, abriguei-me na tal pastelaria, e para não parecer mal, consumi qualquer coisa, um café e um pastel de nata. Sentei-me.
Na mesa ao lado estavam três senhores, pelos seus cinquenta e picos anos, engravatados, fumavam um charuto e bebiam conhaque. Um deles é um dos maiores psicólogos da nossa praça.
A conversa girava em torno de um dos doentes, o dito doente procurou o serviço de um desses senhores porque suspeitava que a mulher tinha um amante.
O amante era um dos senhores da tal mesa. Coincidências, ou talvez não.
Se eu pouco acreditava na psicologia, nesse dia, senti que eu não podia tirar conclusões precipitadas, um profissional não é o espelho de toda uma ciência.
Ainda para mais, nessa semana tinha exame de psicologia educacional, e pouco ou nada tinha estudado.
Segui para a faculdade, faltei ás aulas e fui à psicóloga da Universidade.
Eu tinha que estudar para o exame, e tinha que sentir alguma veracidade no que lia.
Entrei no gabinete, a senhora doutora perguntou-me qual era o meu número de aluno. Atenda-se, perguntou-me o número de aluno, e não o meu nome.
Perguntou sobre o que eu queria falar, e eu falei.
Falei, falei, falei, durante mais de uma hora. E a senhora, calada.
Pelo meio até chorei.
No fim ela olha para o relógio e diz, que o tempo acabou.
Eu que era uma novata nestas lides psicológicas, perguntei-lhe porque é que ela nunca falou, nem olhou para mim, nem perguntou o meu nome.
Ela não respondeu.
Perguntei-lhe quando eu podia voltar.
Aí, e olhando-me nos olhos, disse-me para não voltar.
E eu saí. E não voltei.
E nunca mais fui a nenhum psicólogo.
Hoje quando penso nesse dia, lembro-me essencialmente da chuva, e de ter chorado. Da conversa dos tais doutores na pastelaria, da senhora que vendia rosas brancas na Rua Augusta, do cheiro do Tejo, da mochila verde com um poema escrito a tinta da china, da minha roupa negra de luto.
No final dessa semana tive o tal Exame de psicologia educacional, passei. Mas, lembro-me bem o que lá escrevi. Se o tempo voltasse atrás talvez não escrevesse o mesmo. Mas, sentiria cada linha com mais entranhas. Porque chove mais, e os pastéis de nata estão com canela.

sexta-feira, junho 19, 2009

Morfologias


Sou então obrigada a pensar morfologicamente sobre a oralidade.
Como se a caligrafia só por si
não tomasse a voz rouca dos meus dedos.
Os músculos das minhas exclamações.
As vírgulas do meu sangue.
O ponto final dos meus ossos.
Sou então obrigada a renunciar esse tipo de leis.
Se é que me permites, digo-me a mim sem demoras,
que de músculos,
vírgulas
e
pontos finais
está o mundo lotado.
Agora de exclamações…
Estou rouca.
Prefiro o sentir morfologicamente.
A puxar para a anatomia descritiva.
Sem coacções.
Nem delongas.
Farta de conjecturas. De saltos altos.
É que eu, ando descalça.

segunda-feira, junho 15, 2009

Escrevo-te do telhado.
Sob telhas húmidas.
Beirados meio que tresloucados.
Escrevo-te hoje. Porque não posso esperar para amanhã.
Hoje não há Lua.
Pelo menos daqui não a vejo.
Está nevoeiro.
Um leve nevoeiro.
Ainda se vê a Serra.
Cheira a Alecrim.
Eucalipto.
Rosmaninho.
Ontem foi noite de Santo António.
Não houve fogueira.
Saltos.
Cantorias.
Ontem sussurraste delinquência.
Daquela que desinquieta até ás paredes do estômago.
Daquelas que definem todas as curvas dos lábios.
Em que cada fio de cabelo toma aquele sentido.
Do desejo.
Do pescoço.
Porque é no pescoço que todos os gemidos se concentram.
Em que apetece arrastar as mãos.
Cravar as unhas.
Arrancar a garganta.
Esticar a medula toda.
É delinquência, isto.
É criminalidade o que fazes comigo.
Agora cai uma chuva miudinha.
Deixei de ver a Serra.
.. E um dia destes arrisco-me a ir presa. De tanto nevoeiro que se faz sentir.

sábado, junho 13, 2009

terça-feira, junho 09, 2009

#367

Antro de desejos.
Não fui feita para inacabados.
Para equações mal resolvidas.
Teoremas sem demonstrações.
Pátio de renuncias.
Idas sem voltas.
Bocejos sem sonos.
Gozos sem gemidos.
Pretéritos passados.
Vestido sem decote.
Gelo.
A lua está cheia.
O vento é de Limão.
Cheira a Sal.
Noite. Madrugada.
Gelo.
Não peques por mim.
Já fui proibida de ir à missa.
Perdi a sanidade na confissão.
Esqueci a letra do Padre Nosso.
Gelo.
Peca.
Peca antes pelo desejo.
Dos gozos.
Gemidos.
Decotes.
Salivas.
Línguas.
Peca.
Mas, Peca Bem.
É que no céu não conhecemos ninguém.
E no inferno mora a reinação.
Photo by drina seq

quarta-feira, junho 03, 2009

Raivosa

O meu saborear não é estético.
Nem tão pouco harmonioso.
Melodioso.
Ás vezes consigo transbordar.
Em veemência.
Extrema violência.
Dizem que pensar não dói.
Que o que padece é o agir.
Ah não que não dói.
Dói a valer.
Vai do tornozelo à raiz do cabelo.
É como um bater de porta.
Mas, daquele bater de punho.
Pancadas secas.
Na madeira.
Estremece tudo.
Vibra o organismo.
Os pulmões.
O pescoço.
O maxilar.
Ás vezes o que eu queria mesmo era ser desdentada.
Perder o tal dente do juízo.
E morder todas as emoções.
Com ardência.
Intensidade.
Fogosidade.
Com raiva.
Como os cães cheios de saliva.
Impacientes pela prisão do quintal.
É.
Um dia destes atrevo-me a perder o dente do juízo.
E parto por aí a morder.
A agonia.