terça-feira, dezembro 05, 2006

Palácio de Marfim



"Campos de malmequeres por todas as direcções... norte, sul, este, oeste... pareciam ovos estrelados sobre alfaces, estrelas envoltas em algodão... era naturalmente lindo ficar ali a olhar para aquela tela viva... um sol ameno sobre mim, crianças que fazem uma enorme roda sobre um carvalho com enormes ramos que pareciam tocar o céu, tinha a sensação que se o subisse que poderia abraçar as nuvens e até mesmo saltar para cima destas e brincar como as crianças... do lado oposto ao carvalho, uma linha férrea, umas das primeiras a serem construídas na Escócia após a Revolução Industrial Inglesa... por detrás de mim um enorme armazém abandonado cor de marfim, com arcadas de madeira esculpidas pelo tempo, portas não existiam... pareciam como que um convite de entrada, não hesitei...

Era como um daqueles palácios abandonados dos filmes nostálgicos... telhas meio partidas deixavam a luz do sol entrar... raios muito finos bateram-me na face como que um despertar, não tinha divisões algumas... apenas grandes traves de madeira que teimavam em permanecer ali a segurar o ‘palácio cor de marfim’ ....
Não, não tinha luxo nenhum .... não se esqueçam, era um armazém abandonado... porquê que o achei um palácio?... ora.... se eu escrevesse tudo, qual era a graça?, tentem entrar pelas linhas, nas entre - linhas deste meu palácio...um convite meu.
Do lado esquerdo da arcada principal, velhas mobílias amontoadas ao acaso, como que atiradas para ali sem misericórdia, talvez porque tinham chegado á idade de reforma ou então porque no lugar delas tinham chegado ás casas das famílias da ‘cidade alta’, as novidades mobiliárias da Europa Ocidental...

Aquela ‘pilha’ de mobílias pareciam aos meus olhos um tesouro de Piratas, foi uma aventura abrir todas aquelas gavetas e caminhar para as memórias esquecidas de pessoas que eu não conhecia de lado nenhum. Como era possível?... abandonaram as mobílias.. mas imagine-se, com elas também as suas memórias de gerações e gerações.... - com este pensamento inconscientemente as paredes cor de laranja de Macau permaneceram em mim até hoje ....
Encontrei tantas e tantas coisas naquelas gavetas, que não vos passa pela cabeça, nem pela minha passava, encontrei lá coisas que eu na altura nem sabia que existiam...
Numa secretária antiga feita do chamado ‘pau de brasil’, permaneciam muitos tecidos... cedas... tecidos finos, não me perguntem os seus nomes nem para os descreverem... deduzi por aqueles tecidos que aquela secretária teria pertencido a uma senhora de idade avançada, devido aos tons escuros destes... agora corroídos pelas traças...
Num gavetão de cima... um álbum de fotografias... fiquei deslumbrado, na minha alma tinha o meu próprio álbum e nas minhas mãos um álbum palpável rogado de imagens a preto e branco... no início do álbum tinha umas inicias C.X. por debaixo destas uma data, não me recordo qual... desculpem... várias páginas e páginas de imagens de famílias em jantares rodeadas de criados, de castiçais de velas de diferentes tamanhos e feitios, grandes colunas de pedra em redor de mesas rectangulares e de cadeiras almofadadas... Parecia que estava a viajar no tempo e no espaço, estava a conhecer outra cultura... a cultura da chamada ‘cidade alta’ naquele armazém antigo abandonado.... ironia?... talvez...

Claro está que estas imagens apenas reflectiam a parte bela daquelas estranhas famílias... é usual, as pessoas tendem apenas a tirar fotografias para registarem os momentos bons, ou então para mostrarem aos vizinhos a festa onde foram e o vestido que usaram.. ou mesmo para se obrigarem eles mesmos a acreditar que, se estavam a rir na fotografia era porque tinham motivos para o fazerem... apesar de saberem porém, que no seu subconsciente nenhum motivo teriam para estarem a rir.... Esquecemo-nos por vezes que deveriam existir fotografias de recordação; (não me refiro a fotojornalismo); com os nossos rostos de lágrimas... porque são com elas mesmas, que aprendemos a ter força para continuar a tirar mais e mais fotografias... até chegarmos à fotografia quase – perfeita .... aquela única... sim única.. em que estamos pura e tão simplesmente.. a ... ....sorrir....



























Porquê este silêncio? ............. digam-me vocês."
in Antecâmara (cap. VI)

10 comentários:

Joker disse...

Bom dia Estranha!!!!

Este silencio...para mim é a reflexão do que li...!
Essa mesma, a refelxão das lágrimas numa fotografia que ninguém tem...e porquê, porque não tem????????

--Porque quando choramos, não temos vontade de tirar fotografias...! Geralmente choramos a sós...e dos tristes não reza a história...

A melhor fotografia que temos de nós???
--Aquela que não se sê...o resumo de todas as recordações que fazem de nós, quem somos...ninguém :)

Cheers

Joker disse...

Eu...!? Eu não sou ninguém...!

Um abraço de vicio para ti, Estranha das estranhas...

vinte e dois disse...

Acredito que é das lágrimas e sucessivas cabeçadas que mandamos durante a nossa vida que atingimos mais tarde uma certa plenitude (que o sorriso acompanha)e bem estar :)

Capitão-Mor disse...

Excelente texto! Bem realístico, uma descrição quase cinematográfica...

as velas ardem ate ao fim disse...

Silencio porque a mim me fizeste pensar.
É das muitas cabeçadas na vida que aprendemos mas como seria bom que tudo fosse mais fácil.

mtos beijinhos

Tino disse...

Shhhhhhhhhhhhhhhhh, o silêncio foi a prima magiazeca de meia tigela que pediu!!! It's oh so quiet....

Beijinho silencioso!!!

Estranha pessoa esta disse...

Nada disto se trata de silêncio!

APC disse...

O silêncio é porque afinal a alma fotografou montanhas de lágrimas e guardou tudo ao monte numa caixa que o teu texto abriu. Lembramo-nos das nossas lágrimas, da que provocámos em quem amámos, as que provocaram nos nossos amigos...
De resto, apenas uma dúvida, para eu me situar: a laranja em Macau são de que cor? Azuis?
Adoro descrições bem feitas...




... Por isso vê lá se um dia destes fazes uma!



Ehehehehehe....

Alerta-joke, alerta-joke ! :-)))


FOI UM PRAZER LER-TE!!!


(Li devagar, não faltou nada; mas amanhã ainda lerei; porque sim).

APC disse...

* AS lágrimaS; AS LaranjaS (livra!)

Pierrot disse...

Não sei Estranha
Não sei
Mas te digo que há-de ser pelas memórias de tempos passados que saíram dessas tuas palavras.
Dessa nostalgia...
Um silêncio de quem não as esquece
Bjos daqui
Eugénio